Querido Thay, Querida Sangha,
Sinto-me humilde ao estar aqui, na presença de tantas pessoas cuja compaixão e dedicação tocaram os corações e as vidas de muitas outras. Em comparação com a sua bondade, a sua prática e os frutos dos seus esforços, sou realmente um peixe bem pequenino. Mas é muito melhor ser um peixinho nadando no riacho da compaixão do que frigindo na panela do ódio.
Falo com vocês como israelense, americano, cidadão adotivo da cidade de Roma, judeu, budista, poeta. Como músico, estudante de política e religião, professor, amigo, parceiro, ex-marido, motociclista entusiástico; como um ex-soldado de infantaria que até hoje ainda sente a presença do seu fuzil de assalto automático da mesma forma que alguns mutilados sentem os membros perdidos, apoiado sobre o ombro, com cheiro de graxa e suor. Falo com vocês como irmão, filho e algum dia, talvez, pai. Gostaria de lhes oferecer a seguinte reflexão sobre minha compreensão limitada do Budismo Aplicado no contexto do Oriente Médio.
Vocês podem pensar que na Terra Santa há um conflito entre israelenses e palestinos. Essa não é a verdade. Há um grande sofrimento, sim. O medo a tudo impregna: não apenas o medo de incursões militares, de assassinatos, de ataques terroristas, do chamado para se apresentar à força militar de reserva ou da aniquilação nuclear, mas o medo da exploração, da insegurança econômica, o medo da perda, de não produzirmos o suficiente, de não sermos fortes o suficiente. O conflito se alastra por todos os setores da sociedade, desde as escolas até o governo, o tráfico assassino, a família, o exército; as esferas pública e privada, religiosa e secular. Há uma violência tremenda contra mulheres e crianças, abuso de poder nos locais de trabalho, corrupção, negligência em grande escala e destruição do meio ambiente natural e humano.
Toda essa violência é o resultado da confusão, de percepções enganosas e de visões errôneas. O sofrimento é imenso, mas se nós o interpretarmos erroneamente como o resultado de um conflito entre duas nações, estaremos ignorando suas raízes reais e só vamos perpetuá-las. Usando a ferramenta budista de olhar a fundo no vazio de um eu independente, nós podemos ver uma realidade diferente. Nós, israelenses e palestinos, podemos não ser o mesmo, mas também não somos diferentes. Somos unidos no nosso medo, limitados pelo nosso ódio, intimamente conectados pela nossa incapacidade para ouvir com um coração aberto e idênticos ao sustentarmos a noção errônea de que o nosso sofrimento é o resultado de um conflito nacional.
Por Favor, Não Se Junte a Nós
Não estou negando a existência das máquinas de guerra, dos ataques suicidas, dos pontos de checagem ou das ameaças existenciais. Mas, observando a realidade a fundo, podemos ver que a guerra física é um reflexo da guerra nos nossos corações, uma tentativa de controlar nosso sofrimento, projetando-o em um inimigo externo claramente identificável. Encobrir a realidade mais profunda do nosso sofrimento e de suas causas, disfarçá-lo com uma narrativa de dois personagens, é fazer uma grande injustiça e tornar impossível qualquer transformação real.
Na minha opinião, entender a dimensão mais profunda do sofrimento na Terra Santa já é uma forma de budismo aplicado. Que passos práticos podemos dar para aliviar o sofrimento?
O primeiro passo, como sempre, é nos protegermos e cultivarmos a compaixão. Você pode viver no Sudeste Asiático, na Europa, ou em qualquer parte deste planeta tão generoso nos prover, e assistir frequentemente na televisão às imagens de conflitos políticos. Se nós respondermos a essas imagens movidos pelo julgamento, reduzindo a rede infinita de causas e condições sociais, políticas, institucionais, familiares e psicológicas a um esquema simplista de dois lados, um sendo a vítima e o outro o agressor, estaremos regando as sementes de julgamento em nós mesmos. O ódio e a raiva não precisam de autorização nem de passaporte para passar por pontos de checagem ou muros de concreto e com essa mesma facilidade eles podem entrar nos nossos corações. Se nós fortalecermos as sementes do julgamento, do ódio e da raiva, seus frutos encontrarão um caminho para todos os aspectos das nossas vidas e prejudicarão nossos relacionamentos com todos os que nos rodeiam. Seus parceiros, seus filhos, seus pais e todos os seus entes amados são preciosos para você. Seria uma grande vergonha se os nossos males e a nossa confusão provocassem um momento sequer de discórdia ou de desarmonia na sua família e na sua comunidade.
As mesmas imagens de televisão podem ser abraçadas com compaixão e compreensão profunda. Pense em alguém que lança um foguete Qassam em Israel. Ser um militante não é toda a verdade. Ninguém é apenas um militante. Ele pode ser um militante, filho, irmão, amigo, artista, estudante e assim por diante, inclusive uma vítima de numerosas causas em vários níveis e oriundas de várias direções – levando a essa crença de que matar pode resolver o seu sofrimento ou o sofrimento de seus entes amados. Tampouco alguém é apenas um soldado. A verdade de um soldado é igualmente complexa, humana, sua confusão e suas ações podem ser vistas como o resultado de várias causas, profundas e abrangentes, das quais ele, seu comandante e seu general são todos vítimas. Se eles fossem capazes de olhar mais a fundo, agiriam de forma diferente.
Por favor amigos, para seu próprio bem e felicidade, tomem isto como uma meditação na não-dualidade, na ausência de sinais e no interser, para desenvolverem sua compaixão pelos que ainda não aprenderam a fazer isso. Vocês darão aos seus filhos um belo exemplo de não-julgamento e eles então poderão enriquecer suas vidas e as de seus amados com compaixão e compreensão. Assim, vocês podem transformar um ataque de foguetes ou uma incursão militar em amor, transformando a ignorância em uma lição do Darma. Eu acredito que essa prática vai levar mais alegria para a sua própria vida e isso é motivo suficiente para praticá-la.
Remover o obstáculo de uma visão dualista também oferece várias oportunidades para o Budismo Aplicado em uma escala maior. Assim como encontramos o medo em cada setor da nossa sociedade, podemos encontrar também oportunidades. Nós do Oriente Médio faríamos bem em aprender a apreciar as muitas condições para alegria e felicidade que já estão presentes no aqui e agora. Isso inclui nossas amizades já existentes, nossos filhos, a beleza natural espetacular que nos rodeia e a alegria que podemos encontrar retornando ao milagre da nossa respiração.
Entre essas condições, encontram-se também os incontáveis projetos de paz e de desenvolvimento, graças à dedicação e à generosidade de indivíduos do mundo todo. Seja qual for a sua especialidade – serviço social, saúde, agricultura, meio-ambiente, arte e cultura, esporte e assim por diante – eu acredito que toda contribuição pode aliviar o sofrimento e aos poucos regar as sementes da alegria, desde que seja oferecida após ter se dado o aprofundamento pessoal da prática da compaixão, do não-julgamento e da não-dualidade. Sem essa prática, receio que qualquer esforço, infelizmente, apenas contribuirá para mais sofrimento. Projetos de coexistência são úteis e bem-vindos, mas enfocar só a coexistência, na minha opinião, é correr o risco de enfatizar apenas um resultado das causas subjacentes. A compaixão, a escuta profunda e a fala amorosa podem ser praticadas em todos os níveis da sociedade e em todas as línguas.
- discurso apresentado por Bar Zecharya na conferência “Budismo Engajado no Século XXI”, no Dia Vesak das Nações Unidas de 2008, em Hanói, Vietnã - Publicado na revista Mindfulness Bell)
Fotos: Leonardo Dobbin
Tradução: Renata Colacco